segunda-feira, 20 de outubro de 2008

São Paulo na mídia eletrônica, por Brasilmar Ferreira Nunes

A televisão no Brasil é um veículo de comunicação com um poder fantástico. Particularmente as novelas, cuja penetração em todas as classes sociais faz delas um fenômeno particular de mídia no mundo. Várias dimensões da nossa vida cotidiana, os valores e costumes em nossa sociedade, desde moda vestimentária, termos e expressões lingüísticos, valores éticos e morais, comportamentos, dentre outros, são por elas influenciados. O Brasil urbano tem destaque especial nas tramas, com exceção de uma ou outra produção que trata do mundo rural, sempre como um apêndice de histórias onde as interações em cidades é o principal eixo. Delas, portanto, é uma concepção de mundo urbano que nos é passada cotidianamente, onde cenários os mais diversos se entrecruzam através das histórias e de seus personagens. Em todas é a vida do brasileiro na cidade o pano de fundo, o que termina por difundir uma peculiar representação do urbano brasileiro.
Das novelas televisivas, a chamada “novela das oito” da TV Globo é a que alcança os maiores índices de audiência. Escritas por quatro ou cinco autores principais que se revezam, são eles o triunvirato que vem formando a imagem de Brasil nessas últimas décadas, com enorme o poder de influência e de impacto sobre as mentalidades, uma das características da televisão brasileira, talvez única no mundo nesse particular. O Brasil, nossa sociedade é, ou será, aquilo que se reflete na novela “das oito”.
Nesses últimos meses fomos colocados à frente de uma destas telenovelas “das oito” da Globo – A favorita – escrita por um autor que foge aos quatro ou cinco tradicionais noveleiros responsáveis pelo horário neste canal. Dentre as inovações conceituais que insere na estória dos personagens quero destacar uma originalidade frente à anteriores, pelo menos desses últimos anos. A grande maioria das histórias novelescas se passam no Rio de Janeiro; nesta é a cidade de São Paulo que se mostra como pano de fundo para a circulação de tipos humanos e de vidas que se entrecruzam, em geral dramaticamente. Portanto, um cenário sem praia, sem sol, sem verão.
O princípio máximo nos diz que novela televisiva é uma fantasia. Todos temos isso em mente e não se foge a este princípio às custas de não alcançar índices aceitáveis de audiência e, portanto não ir ao ar. É um produto que se vende, tem, portanto que seduzir e isso resume sua dinâmica mercadológica. Esse princípio envolve também a apresentação cenográfica. Uma favela ou uma área rica devem conter signos palatáveis, pois o objetivo é aquilo que se passa entre os personagens; é isso que deve mobilizar a atenção imediata do telespectador.
A São Paulo da trama é uma cidade misteriosa. Entre uma cena e outra ela aparece em imagens fantásticas, uma espécie de Metropolis do século XXI com arranha-céus e avenidas, às vezes distantes, e raras vezes com pessoas comuns caminhando pelas ruas. A São Paulo que ali aparece é a cidade onde se circula de automóvel, e nesse particular, uma cópia de Brasília, esta sim a verdadeira cidade das quatro rodas. O cenário é o pano de fundo, mas não deixa passar a dificuldade que é circular e interagir na cidade no dia-a-dia. Em outras palavras, o automóvel e os arranha-céus não estão inseridos na trama, que constrói as personagens de diferentes mundos sociais que, num ritmo peculiar, se entrecruzam num jogo que ultrapassa as diferenças sociais.
O foco sobre determinadas figuras reduz a vida na metrópole a um ritual de pequena cidade. As pessoas se conhecem, ou são construídas para se conhecer, se freqüentam independente da origem social, transitam por mundos restritos que os aceita sem a preocupação com a origem social. Assim, a filha de um magnata cuja fortuna a coloca entre as famílias da alta burguesia paulistana pode muito bem se apaixonar por um funcionário de baixo escalão de uma das empresas do avô, ou pelo filho de uma cafetina que mantém uma casa de prostituição em um bairro de classe média alta da cidade. Em nenhum momento ela se relaciona com seus iguais e o seu círculo de relações não causa estranheza nos seus pares. Não há distâncias sociais visíveis.
As facilidades de se mover entre mundos sociais opostos passa uma sutil mensagem sobre a possibilidade de inexistência de conflitos inter-classes. Os conflitos são individuais e jamais relacionados à posição social de cada um. Não há barreiras sociais entre os diferentes mundos e a facilidade de trânsito nos automóveis se completa com a facilidade no trânsito entre os grupos de origens distintas. O que move as pessoas, o que as fazem amar, odiar, prevaricar, é a sede de dinheiro, e do poder que ele pode oferecer. A dinâmica do mundo é ditada pela possibilidade de se ter o vil metal em mãos, em um mundo onde a sobrevivência é assegurada e tranqüila.
Temos, portanto aí uma visão de mundo e da cidade de São Paulo onde os bons e os justos estão por toda parte, e seriam felizes se não fosse a presença de alguns tipos mesquinhos capazes de qualquer gesto para obter dinheiro e poder. Seja um político, seja um operário, seja uma cafetina, seja mesmo um gigolô são personagens que jogam o papel de vilões num mundo dos justos. O fim será sempre o mesmo, os bons com os bons e os maus ou mortos, ou presos, ou fogem para um outro país, mas jamais ficarão no Brasil, ou em São Paulo. De fato, a São Paulo da trama é a mesma Rio de Janeiro das demais novelas das oito, onde o indivíduo é o rei.
Porém, outra São Paulo é mostrada no cinema nesses últimos dias e que é o oposto daquela cidade da “novela das oito”. É a cidade da periferia imensa, cujos limites são fluídos, onde não existem arranha-céus, onde as residências são simples, com esse ar de “em fase de terminar” que caracteriza os subúrbios de nossas metrópoles. Trata-se do “Linha de Passe” filme de Walter Salles em cartaz nos cinemas no Brasil.
Estamos aqui na margem da sociedade: há uma dificuldade enorme na vida cotidiana, com dramas que se originam da condição social mais do que propriamente dos indivíduos isolados. O universo da periferia é, portanto cru, seco, anônimo, onde até mesmo os afetos são brutos nos seus gestos e nas suas expressões. Os mundos sociais são inteiros, isolados, sem cruzamento com outros mundos: não se misturam.
A São Paulo mostrada passa longe da Avenida Paulista ou dos bairros dos Jardins. São mundos opostos que não se enxergam. Nem mesmo a oposição entre eles aparece, pois é como se ignorassem um ao outro. A condição de doméstica da personagem principal trabalhando para uma família de classe média em nenhum momento deixa transparecer uma cumplicidade entre os mundos ali presentes. São figuras estranhas que se relacionam via salário, de forma impessoal, onde os afetos ou não existem ou são reprimidos para não romper a relação salarial, esta anônima. O próprio ambiente da área onde se situa o apartamento da patroa não é mostrado. Tudo se passa como se fosse externo ao olhar da empregada, para quem os sonhos e a sobrevivência cotidiana é um abismo onde a possibilidade de cair é um princípio de realidade. Nada está garantido, tudo pode ruir a qualquer momento; disputa-se cada dia a possibilidade do dia seguinte, seja como pastor de uma igreja evangélica, uma busca obstinada por um espaço no mundo do futebol, uma busca obsessiva por um pai ausente.
A unidade familiar aqui é o esteio que sustenta na figura da mãe como chefe. Todos seguem rituais ditados por ela. Ela comanda a vida de cada um com autoridade que advém da própria condição de sobrevivente. Interessante que a mãe aqui é diferente da mãe da “Favorita”. Ali ela é uma figura a mais na cena familiar, com poderes limitados frente à figura do filho ou do chefe da família, seja ele o grande industrial, o antigo operário, ou a que disputa um amor de filha com a outra. Na São Paulo de Salles, a figura da mãe é a chefe incontestável. Ela coordena a vida dos filhos através de fios invisíveis, de uma autoridade natural, de um compartilhamento comum do cotidiano que gera uma cumplicidade absoluta.
Além de uma construção dramática oposta entre as duas obras, o interessante nas tramas é a cidade como ambiente determinante. Na novela, a história poderia se passar em qualquer lugar, pois o mundo quem o faz são os indivíduos dentro dele. Talvez porque o hábito de se ver famílias ricas onde tudo no cotidiano se resume a coisas banais tão recorrentes em novelas nos tenha habituado ao mundo dos poderosos. Ele nos é familiar, quase um conhecido íntimo que freqüentamos assiduamente. A mansão do industrial, as moradias dos operários, os apartamentos onde circulam personagens tudo é asséptico, com as coisas no lugar, sem maiores surpresas. As personagens são identificadas por si só, pelo que elas parecem ser. Na novela não há uma identidade explícita do lugar; o lugar ali é qualquer lugar do mundo.
No cinema, a periferia de São Paulo é personagem, tanto quanto as figuras humanas. As ruas estreitas, tortuosas, mal iluminadas, a diversidade de estilos das casas, o ar de abandono que caracteriza tanto o interior como o exterior das casas, nada se enquadra numa lógica racional de desenho urbano. A cidade aqui é um depósito de gente que dificilmente se apega ao lugar. No cinema, o lugar é produtor de identidades: as pessoas são o que são também porque moram em um lugar determinado. Lutam para se tornarem visíveis numa cidade que os colocam na invisibilidade. Se movem, se vestem falam e olham com um estilo peculiar.
Por mais que a imagem televisiva nos tente mostrar que estamos no melhor dos mundos apesar de alguns tipos isolados que o perturba, a contraposição com a São Paulo da periferia nos faz perceber que o Brasil continua sendo uma sociedade fragmentada, com mundos isolados que não interagem entre si, A cena onde o motoqueiro grita para um classe média, que poderia ser um personagem da novela, para que este o olhe na cara é a síntese da trama e do drama brasileiro.