sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Brasília e seu idealizador, Lucio Costa



Filho de pais nascidos em Salvador e Manaus, e residentes no Rio de Janeiro, Lucio Costa nasceu em 27 de fevereiro de 1902, em Toulon, na França, em razão das longas estadas do pai na Europa, a serviço do governo brasileiro.

A sua família se mudou definitivamente para o Brasil em 1916, num navio às escuras para escapar dos submarinos alemães em plena Primeira Guerra Mundial. Contava ele com 14 anos.

Em 1923 diplomou-se em arquitetura pela Escola Nacional de Belas Artes.

Foi numa visita informal a uma residência em reforma, para onde se dirigira a fim de verificar sem compromisso o andamento da obra, que se deparou pela primeira vez com Julieta, apelidada de Leleta.
Conforme relataria mais tarde, ela estava atirada ao chão, ocupada em afazeres domésticos, “com uma florzinha de manacá nos cabelos”.

Os caminhos do jovem arquiteto e da moça que emanava beleza e elegância se encontravam e passariam, em breve, a se tornar um. Em 1929, Lucio Costa e Julieta Guimarães se casam numa cerimônia simples. Passam a morar, por alguns anos, na casa de verão do sogro, em Correias, simpática cidade perto de Petrópolis. Nascem as duas filhas do casal, Maria Elisa, filha mais velha, e Helena.

Em 1930, aos 28 anos de idade foi nomeado diretor da Escola Nacional de Belas Artes, além de montar, em parceria com outro arquiteto, o seu próprio escritório.

Porém, às vezes, interrompia o percurso profissional e recolhia-se em si mesmo. Num desses períodos, de 1932 a 1936, que ele chamou de chômage (em francês, desemprego), rejeitou todos os projetos que lhe pediam. Aproveitou o período para estudar a fundo a obra dos fundadores da arquitetura moderna.

Foram anos de crise intelectual, porém fundamentais na sua formação.

“Muitos arquitetos se revelam num período de sucesso. Eu me formei no fracasso”, escreveria mais tarde, “É justamente quando a perplexidade atinge seu clímax que novas perspectivas se abrem de repente em meio à configuração intrincada e ilógica dos acontecimentos, e tudo parece, de novo, fácil e claro.”

Em 1937 assumiu a direção da Divisão de Estudos de Tombamentos do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Com sua entrada no Iphan acabou por abandonar o escritório profissional. Sua mesa era ao lado do poeta Carlos Drummond de Andrade. Dentre seus principais trabalhos neste período configuram o projeto do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, - conhecido hoje como Palácio da Cultura -, inaugurado em 1945, e a participação na comissão encarregada de analisar os projetos para a sede da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), em Paris, nos anos de 1952 e 1953.
Num fim-de-semana, no ano de 1954, a família arrumou as malas e tomou a direção do distrito de Correias, na serra fluminense, onde costumava descansar. Uma tarde de mormaço, que logo virou chuva de final de verão. De repente, o carro deslizou e foi de encontro a uma árvore. Julieta, mulher de Lucio, foi apunhalada pela alavanca de mudança, que era presa ao volante do automóvel. Teve morte instantânea.

Ele se culpou o resto da vida, acreditando ter cochilado alguns segundos na direção, embora haja indícios de que os pneus tenham perdido a aderência à pista molhada. As filhas tentaram em vão convencê-lo de que havia sido uma fatalidade. "Foi um cochilo meu, idiota. Que maldade do destino!", lamentava-se.

Muitos anos depois do ocorrido, o poeta Thiago de Mello testemunhou a dor do amigo. Ele havia ido visitar o arquiteto, em seu apartamento, no Leblon. Conversavam, Thiago andava pela sala até que parou e ficou contemplando o retrato na parede. Comentou: ‘‘Como era linda, Lucio, a sua mulher!’’. Ele sorriu suavemente, se calou e, em seguida, calmamente, passou a contar ao amigo as circunstâncias do acidente. Chorava. Guardou, por 44 anos, a dor de ver sua amada morrer num acidente com o carro que ele dirigia.

Em 1957, atendendo a um sonho do então presidente Juscelino Kubitschek, um concurso para propostas de projeto para a construção da futura capital, Brasília, é realizado.

A idéia de planejar uma nova cidade atrai Lucio Costa. Trancado em si mesmo, precisou de pouco mais de três meses para criar um novo mundo.

No dia 11 de março de 1957, a filha do arquiteto desceu às pressas de um velho Citröen, enquanto o pai a esperava no carro, rente à calçada do prédio do então Ministério da Educação e Saúde Pública, no centro do Rio. Faltavam dez minutos para o encerramento do prazo de entrega dos projetos do concurso do Plano Piloto. A moça subiu ao saguão do Ministério, entregou o projeto, apanhou o recibo e foi embora.

O júri era formado por seis membros, - renomados arquitetos, urbanistas e críticos de arte. O que viram foi, de início, constrangedor. Lucio Costa já era, à época, um dos grandes nomes da arquitetura brasileira. Mas os rabiscos toscos feitos a lápis de cor, pequenos desenhos a nanquim e um texto batido a máquina pareciam brincadeira de criança diante de maquetes, croquis, quadros de alumínio - recursos sofisticados que compunham os projetos já entregues.

Uma semana depois, no dia 16 de março de 1957, o júri consagrou, dentre os vinte e cinco, o mais mal-apresentado dos projetos, um trabalho de feição amadora, sem um único cálculo.
Sem equipe e com poucos desenhos, mas munido de um belíssimo memorial descritivo, o projeto de Lucio Costa foi considerado pelo júri o único adequado a uma capital. A proposta aliava monumentalidade e clareza. Na era do automóvel, suprimiu, com o uso de trevos, os cruzamentos nas vias.

O poeta Carlos Drummond de Andrade ao ver os traços comentou “era rabisco e pulsava”.
Na introdução do memorial descritivo, escreveu Lucio Costa:
“Desejo inicialmente desculpar-me perante a Comissão Julgadora do Concurso pela apresentação sumária do partido aqui sugerido para a nova Capital, e também justificar-me.
Não pretendia competir e, na verdade, não concorro, - apenas me desvencilho de uma solução possível, que não foi procurada mas surgiu, por assim dizer, já pronta.
...E se processo assim candidamente é porque me amparo num raciocínio igualmente simplório: se a sugestão é válida, estes dados, conquanto sumários na sua aparência, já serão suficientes, pois revelarão que, apesar da espontaneidade original, ela foi, depois, intensamente pensada e resolvida; se não o é, a exclusão se fará mais facilmente, e não terei perdido o meu tempo nem tomado o tempo de ninguém.

É assim eficiente, acolhedora e íntima. É ao mesmo tempo derramada e concisa, bucólica e urbana, lírica e funcional. O tráfego de automóveis se processa sem cruzamentos, e se restitui o chão, na justa medida, ao pedestre”. (Da Introdução do memorial descritivo apresentado por Lucio Costa).

O criador de Brasília não gostava de acompanhar obra, - cultivando até certo desinteresse pelo dia-a-dia bruto de uma construção. Nos três anos, seis meses e 18 dias que durou a construção, Lucio Costa veio poucas vezes a Brasília.

Para aquele que perde um ente querido de modo inesperado, antes da hora, as celebrações perdem a cor, e transformam-se em ocasiões em que a lembrança da pessoa amada se faz mais intensa. Por causa desta lembrança, Lucio Costa não veio à inauguração de Brasília.

Na quinta-feira, 21 de abril de 1960, dia de festa na novíssima capital, acordou especialmente triste, com saudades da mulher que havia morrido seis anos antes. Era uma dor intermitente, talvez ininterrupta.

Nos anos seguintes, elaboraria diversos outros projetos.

Lucio Costa dedicou a sua vida à busca de uma identidade brasileira.

O único patrimônio que acumulou para si era o modesto apartamento onde morava num prédio de cinco andares, à beira da Praia do Leblon, em meio a pilhas de jornais, fotos, cartas, textos e desenhos. Viva com uma aposentadoria de R$ 1.400,00 por mês.

Numa das suas últimas entrevistas, em 1997, aos 95 anos de idade, diante da pergunta “Quais são seus planos para o futuro?”, respondeu:
“Morrer, simplesmente. Sonho com uma sepultura no cemitério São João Batista, que já existe. Comprei duas sepulturas no São João Batista, para minha mãe e meu pai. Pretendo ficar lá.”
Foi nesta época que escreveu a seguinte recomendação num bilhete:
“Não me internem. Lugar de morrer é em casa.”

Foi contemplado com a benção de atingir a idade avançada completamente lúcido, embora sofresse com o glaucoma, que não lhe permitia mais olhar a paisagem que tanto apreciava.
Em 13 de junho de 1998, por volta das 09:00 horas da manhã, faleceu, aos 96 anos, em sua residência no Leblon, na cidade do Rio de Janeiro.

“Foi enfraquecendo até que, certa manhã, sentou-se para tomar café. Bebeu três colheres e se apagou, de mansinho", lembra a filha Maria Elisa.

Helena, a filha mais nova, relata a seguinte recordação dos últimos momentos ao lado de seu pai:
“Há muitos anos atrás você contava que o Aleijadinho, já muito doente, pedia que o Senhor lhe pisasse os seus divinos pés. Quando você já estava na última etapa da sua vida, aquela fase tão sacrificada, entrei no seu quarto e fui acolhida com uma expressão tão carinhosa, que se tornou inesquecível para mim”.

Autor da única obra contemporânea que é Patrimônio Cultural da Humanidade, incluída no que a Unesco define como herança do Planeta.

Membro honorário da Académie d'Architcture, do Royal Institute of British Architects, e do American Institute of Architets; agraciado com o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Harvard; condecorado com a maior honraria do governo francês, a Legião de Honra, no grau de “Commandeur”.

Homem de longos silêncios, avesso ao espetáculo, inimigo do espalhafato, e, até por isso, personagem pouco conhecido da maioria dos brasileiros, mesmo daquela parcela instruída e atenta.

Teve um sepultamento singelo - amigos, familiares. Pouquíssimas autoridades compareceram.
Criou uma teoria que combina humanismo e tecnologia. Pintou, escreveu, desenhou, criou roteiro de filme, rabiscou caricaturas, projetou cidade, bairro, prédios, casas e móveis, colecionou soldadinhos de chumbo, fez amigos, filhas, netos, bisnetos. E amou Leleta.
Tinha modos inacreditavelmente desprovidos de vaidade.

Corria o ano de 1960, Lucio Costa viajava com as duas filhas pela Grécia, de carro, quando comoveu-se com um mochileiro que pedia carona. Ao saber que a generosa família era brasileira, o caroneiro - alemão, estudante de Medicina - desandou a falar, entusiasmado, sobre Brasília, a cidade modernista inaugurada havia pouco no distante Brasil. Depois que o rapaz desceu do carro, as filhas de Lucio comentaram, surpresas: “Mas papai, você nem ao menos disse que o plano da cidade foi seu!”

Anos antes, Carlos Drummond de Andrade escreveu uma crônica sobre o convívio de doze anos com o colega de repartição Lucio Costa - os dois trabalhavam no Iphan. Falavam-se pouco, admiravam-se muito. Quando cruzavam no corredor, às vezes conversavam; quase sempre, não. Lucio Costa mantinha-se calado e Drummond respeitava esse silêncio “como se respeita o silêncio das igrejas”.

O genial arquiteto jamais demonstrou nenhuma ânsia de sucesso, não alimentando “essas preocupações de figurar como evidência pessoal. Nunca tive essa ambição, de querer estar em evidência. Se tive alguma evidência, é apesar de mim e não por culpa minha”.

O seu maior legado foi uma vida repleta de amor, respeito, generosidade, carinho, e senso de humor.

Numa das suas últimas entrevistas pediram que ele se definisse. A sua resposta foi simplesmente: “um homem bom”. Como se afirmasse que tudo mais, - títulos e troféus, condecorações e honrarias -, acaba passando...

“O meu amigo padecia de indignidade moral contra tudo que fere a beleza da dignidade humana. Era a pessoa mais delicada que já conheci. Era a delicadeza em toda a sua riqueza e profundidade. O respeito que tinha por si próprio e pelo seu trabalho lhe advinha do superior respeito pelo ser humano. Por toda e qualquer pessoa que conhecia.”
Thiago de Mello
poeta amazonense

Lucio Costa pertenceu a uma geração de intelectuais que vislumbraram o Brasil como nação desenvolvida.

Encantados com suas potencialidades, e conscientes do imenso desafio, contribuíram, cada qual, juntando o melhor de suas habilidades, para um projeto de país.

Homem de seu tempo por excelência, Lucio Costa, com seu legado, provoca-nos lembrando a nossa capacidade de encontrar soluções ontem, hoje e sempre.

O legado deixado por Lucio Costa testemunha sua imensa, atuante e definitiva fé no Brasil:
“Um país precursor, acho que vai ser, dará o seu recado no tempo certo, porque não tem vocação para a mediocridade.”

A organização Casa de Lucio Costa cuida do acervo e da memória do arquiteto e urbanista.

http://www.casadeluciocosta.org/

Formatação: um_peregrino@hotmail.com

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