domingo, 27 de abril de 2008

Brasilia – quase meio século, por Brasilmar Ferreira Nunes.


De maneira recorrente, as críticas sobre Brasília insistem sobre o desenho da cidade, caindo num senso comum repetitivo e cansativo. Nessas criticas, o espaço físico, o desenho da cidade, o seu plano urbanístico é o foco: não tem praças, não tem esquina, não tem calçada, não tem o boteco do bairro, não tem praia, e assim por diante. Como toda análise rápida e ordinária cai-se na armadilha de dizer o que ela não é, ao invés de dizer o que ela é.
Brasília faz 48 anos. Tempo longo se pensarmos no que era o Brasil dos anos 50/60 do século passado, porém irrisório se pensarmos nos longos ciclos da história universal e mesmo brasileira. Documentos oficiais nos lembram que a cidade foi pensada como um marco nacional permanente, algo assimilável nestes termos ao Hino Nacional e à Bandeira, tendo como função principal representar o país para si mesmo. Podemos afirmar que o papel de capital política do país está devidamente consolidado. Isso pode ser demonstrado por diferentes análises. Basta lembrar que uma manifestação política na Esplanada dos Ministérios repercute com muito mais força do que em qualquer outro espaço urbano do país, conseguindo, portanto, num curto período de existência, adquirir a centralidade política que extravasa a função administrativa do Estado e alcança a dimensão simbólica do fazer política. . O fato de ter sido construída para ser capital política já lhe garante um lugar privilegiado dentre as cidades brasileiras e o seu desenho só viria a somar a esta importância que é concreta.
Trata-se de uma cidade que por suas funções não necessita disputar lugar com outros sítios: sua importância lhe é inerente. Caso exemplar do urbanismo do século XX é tombada pela UNESCO como “Patrimônio Cultural da Humanidade”, quando ainda estava para completar seus 30 anos de existência. Estamos beirando os dois milhões e meio de habitantes, dos quais, aproximadamente 15% estão neste Plano Piloto de origem. Os demais estão espalhados por cidades satélites, numa conformação polinucleada, de tal forma que à primeira vista parecem independentes entre si. Entretanto, Brasília (Plano Piloto) concentrando cerca de 70% do emprego formal transforma uma boa parte das satélites em cidades dormitórios, numa dependência visceral do Plano Piloto, rapidamente adquirindo status de centralidade.
Os critérios utilizados para classificar a área tombada ficaram distantes daquela que comandava os debates sobre um possível tombamento de Brasília nos fins dos anos 70 e anos 80 quando se discutia a sua pertinência e viabilidade. Poderíamos destacar, por exemplo, a constituição de um grupo interinstitucional formado por professores da Universidade de Brasília, técnicos da Fundação Nacional Pró-Memória (Ministério da Cultura) e o Governo do Distrito Federal , grupo este denominado “Grupo de Trabalho para a Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Natural de Brasília (GT-Brasiilia)”, cujas primeiras discussões são já dos fins dos anos 70. O objetivo era traçar e definir parâmetros para a política de preservação do patrimônio do Distrito Federal. Analisando documentos técnicos e acadêmicos produzidos pelo grupo constata-se uma concepção de patrimônio presente naquele momento envolvendo a paisagem original e pequenos povoados pré-existentes à cidade. Entretanto, o discurso da arquitetura aplicado a Brasília ganha força com a passagem de Lucio Costa pela cidade em 1987, pouco antes de seu tombamento: há neste momento um retorno à hegemonia do desenho sobre os aspectos culturais defendidos pelo GT-Brasilia.
Levanto tais questões de forma ampla apenas para ressaltar que a cidade cresce através de dinâmicas múltiplas, gerando um espaço social a velocidades variadas. Entre o urbanismo de primeiro mundo que caracteriza a área nobre da cidade e as leis de mercado, às vezes selvagem de ocupação do solo em várias satélites, são realidades distintas que se apresentam para um observador mais atento. Por um lado, o tombamento freia forças de mercado que poderiam descaracterizar o desenho original, dando a impressão de que se engessou o espaço transformando-o em um museu dos anos 50. Por outro, as satélites gozando de uma liberdade relativa e povoada por grupos de múltiplas características, produz espaços urbanos e culturais com enorme dinamismo. Veja por exemplo, as práticas culturais de jovens de Ceilândia ou de Taquatinga, a formação de torcidas organizadas de futebol, o culto a tradições populares da cultura brasileira como o carnaval, tudo acontecendo com muito mais evidência nas cidades satélites.
Uma rápida olhada nas transformações do espaço no Plano Piloto revela uma dinâmica intimamente adaptada às novas modalidades do mercado de cidades no plano nacional e internacional. Os equipamentos de consumo que são permanentemente construídos são padronizados para atender a um gosto de classe que tem que se sentir integrada numa modernidade clichê: são shopping centers, equipamentos culturais, hotéis, aeroporto, parques, museus, cinemas, todos em continuo processo de implantação e multiplicação guardando sempre os padrões da estética globalizada e sua lógica de uniformização da sensibilidade.
Enquanto isso, nas satélites apesar de certo ar de improviso na estética urbana aí presente, sente-se uma vibração que, apesar de discreta, revela muito das expectativas dos seus moradores. Um mercado habitacional super dinâmico, uma variedade de comércio típico de áreas com renda heterogênea e uma espécie de otimismo velado que é próprio de áreas com elevados índices de mudança.
Há portanto no caso de Brasília uma interessante oportunidade para se refletir sobre o espaço construído como síntese de uma sociedade. Ao mesmo tempo, o peso simbólico do Plano Piloto fortalecido no conceito de patrimônio cultural auxilia nesta distância social assimétrica à realidade das cidades satélites, oferecendo as bases para a idéia de memória nacional que se apresenta, de fato, altamente seletiva. Neste caso, “patrimônio cultural” não se articula mecanicamente com “tradição” mas vai ser a condição mesma para a transformação de um espaço sem história no símbolo da nação.

Bibiografia
Joseph, Isaac: La ville sanos qualités Paris, Éditions de l´Aube, 1998
Kolsdorf, Maria Elaine: A preservação dos espaços urbanos: marco teórico para o caso de Brasília. : Síntese dos trabalhos do GT Brasília p.8-18
Ribeiro, Sandra Bernardes: Brasília – Memória, Cidadania e Gestão do Patrimônio Cultural. São Paulo, Annalume, 20005
Leite, Rogério Proença: Contra-Usos da Cidade – Lugares e Espaço Público na Experiência Urbana Contemporânea. Campinas SP, Edit. UNICAMP; Aracaju SE, Edit. UFS, 2004
Jacques, Paola Berenstein: Espetacularização Urbana Contemporânea in Cadernos do PPG-FAU Territórios Urbanos e Políticas Culturas, Salvador, FAU-UFBA, 2004
Brasilmar Ferreira Nunes é professor do Depto de Sociologia da Universidade de Brasília, Pesquisador do CNPq.

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