Há algumas experiências que são definitivas na construção da memória. Afinal de memória está associada a um processo seletivo lembranças e esquecimentos.
Desde que cheguei a San Francisco passei reconhecer a cidade de vários modos, mas não estou muito interessado em reconhecer a arquitetura urbana pela formas e contornos que uma experiência visual mais imediata proporcionaria. Na verdade estou construindo um mapa olfativo/afetivo de São Francisco.
O clima semelhante ao mediterrânico, com algumas oscilações gera a necessidade de edificações com portas que possam vedar a entrada da umidade e, portanto do frio. Esse isolamento térmico é perfeito pra criação do que eu poderia chamar de “bolhas aromáticas”. As casas de madeira aquecidas a gás butanol se misturam com o cheiro da madeira e umidade o que gera um odor de coisa velha e apodrecida. Recordo-me que perguntei várias vezes. “Mas que cheiro é esse?” Normalmente a resposta era “cheiro? Que cheiro?” Mas de fato passado algum tempo aquilo que incomodava minha memória desapareceu do meu olfato.
Acho que as experiências mais extremas em relação à cidade e o cheiro ou em alguns casos seu “mau cheiro”.
Lembro-me dos primeiros dias utilizando o sistema de ônibus elétricos da cidade o MUNI. Normalmente ele ficava meio cheio, mas não muito. Latinos, Asiáticos, brancos, negros, velhos, crianças, jovens, homens de terno e gravata e mendigos. De fato, o MUNI é uma espécie de síntese da população de São Francisco. Toda essa gente reunida cria um cheiro peculiar, e às vezes bem intenso. Acho que esse foi o cheiro mais democrático que já senti na vida. E como em qualquer regime que divide opiniões, às vezes eu o achava inaceitável, especialmente quando eu notava algo meio parecido com vômito espalhado pelo seu assoalho. Isso não era muito raro, pois por aqui o arranjo das ruas obriga o veículo acelerar e frear bruscamente devido ao excesso de cruzamentos, algumas pessoas passavam mal e deixavam seu rastro. Ainda nessa semana eu sentei de frente para uma jovem garota. Ela era loira, olhos azuis abatidos e com uma velha maquiagem escura. Ela usava um velho jeans e moletom surrados. Ela trazia consigo além do ipod e fones de ouvido, um par de tênis em suas mãos pois ela estava calçada com uma sandália branca que revelavam seus pés e unhas com um esmalte lilás já surrado pelo tempo. Ela tinha um olhar vazio voltado pra janela. De fato ela só me evitava. Mas o tênis e o seu mau cheiro me davam uma pista do quanto ela já havia percorrido até chegar ao MUNI. Contudo, ninguém se manifestava afinal it wasn’t our business.
Já no Shopping Westfield, um dos mais caros e movimentados da cidade além de estar localizado num prédio dos anos 50, completamente reformulado, com alguns traços de neoclássico e art deco. Alí tive outra amostra da diversidade dos odores e aromas de San Francisco. Logo na entrada, fui recebido por um suave aroma de que lembrava algo semelhante a uma a baunilha. Na verdade, eu não estou bem certo de que tipo de cheiro era esse, provavelmente era o contagiante cheiro do consumo algo meio sweet dreams. O cheiro doce era algo meio, entorpecente. O mais curioso é que esse cheiro representava uma linha divisória entre o cheiro da rua, ocupada pela população mais ordinária da working class, e o espaço aquecido e seletivo do shopping mall.
Talvez o cheiro mais impessoal de São Francisco esteja no metro BART. O ambiente arejado das galerias e o ar condicionado dos vagões selecionam uma classe média. Blue collars, profissionais liberais aproveitam o tempo para lerem seu e-book em seu PDAs enquanto aguardam a estação desejada. O cheiro é simplesmente uma equação entre conforto status social. Por fim, na civitas contemporânea regida pela crença na nanotecnologia, ninguém fede nem cheira, a não ser um pouco de mofo.
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Breitner Tavares é doutorando em sociologia pela Universidade de Brasília - UnB e bolsista internacional da Fundação Ford e Comissão Fulbright. Atualmente, desenvolve seu trabalho de pesquisa na Universidade de Berkeley – Califórnia, na condição de visiting scholar, no departamento de Estudos Étnicos. Breitner tem se dedicado a estudar formas de orientações coletivas em espaços segregados no Distrito Federal, como em Ceilândia-DF, cidade em que nasceu.
Breitner Tavares é doutorando em sociologia pela Universidade de Brasília - UnB e bolsista internacional da Fundação Ford e Comissão Fulbright. Atualmente, desenvolve seu trabalho de pesquisa na Universidade de Berkeley – Califórnia, na condição de visiting scholar, no departamento de Estudos Étnicos. Breitner tem se dedicado a estudar formas de orientações coletivas em espaços segregados no Distrito Federal, como em Ceilândia-DF, cidade em que nasceu.
Doctorate student in Sociology at the University of Brasília – UnB. The author has a Ford Foundation International Scholarship and a Fulbright Fellowship. Nowadays, the author is a visiting scholar at Ethnics Studies department at UC. Berkeley - California. Breitner has studied about social presentation and its relationship with space in Brasília.
2 comentários:
Muito bom, Breitner. Me fez lembrar do livro O Perfume, do Patrick Suskind. Recomendo esta outra aventura olfativa pra você.
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