segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Para que as cidades ressuscitem

Proposta: lançar, na cidade mais individualista e caótica do país, um movimento de ecologia urbana, capaz de questionar a civilização do automóvel e abrir debate sobre políticas que permitam uma existência digna.

Manoel Neto , Flávio Shirahige

Se São Paulo fosse um crime, como poderíamos evitá-lo? Pergunta inusitada, ainda mais porque "no país do futuro" esperaríamos que o amanhã chegasse primeiro na "cidade que nunca dorme". Porém, uma descrição atenta da cidade do ponto de vista da ecologia urbana pode nos ajudar a enxergar melhor esse crime e, quem sabe, como evitá-lo no futuro.

São Paulo é uma expressão exemplar do paradigma de "civilização" consumista: sua frota de veículos é a segunda maior do mundo, só ultrapassada por Tóquio, e cresce em ritmo oito vezes mais rápido do que a sua população. A cidade, que se transformou em metrópole sob a égide da indústria automobilística, cedeu seu espaço cívico para o carro e perdeu sua alma.

Seria até trivial apontar as estatísticas criminosas associadas ao símbolo da industrialização consumista de que São Paulo é exemplar: 92% da poluição é causada pelos carros, reduzindo em quase dois anos a vida média do paulistano. Acidentes automobilísticos são a maior causa de mortes não-naturais: 1.487 pessoas perderam a vida no trânsito da cidade em 2006, segundo a Companhia de Engelharia do Trânsito (CET). Além disso, há outros nove óbitos diários, em média, devido à poluição do ar, de acordo com estudo da Faculdade de Medicina da USP. Porém, não há nada de banal em indicar um dado quase apocalíptico: caso nada seja feito, São Paulo pode ter o ar tão poluído, em 2020, quanto a Vila Parisi, a área industrial de Cubatão conhecida como Vale da Morte.

Não é, de fato, uma cidade, mas um ajuntamento individualista, cujo símbolo maior é o carro, o maior crime de São Paulo. A péssima qualidade de vida resultante é o um crime contra as pessoas e o próprio meio-ambiente da cidade. Opção: ou Vale da Morte, ou cidade recuperada pela sociedade civil.

Talvez importe menos descobrir o criminoso do que saber como é que podemos ressuscitar o morto na sala de operações. Em outras palavras, como transformar São Paulo em uma cidade, em uma urbe habitada por cidadãos, aptos a discutirem suas condições de vida e pactuarem políticas que levem a uma existência digna?

Ao concebermos a cidade como um ente vivo, cuja saúde determina também a vida, felicidade e sofrimento dos seus moradores, ganham sentido os padrões de mobilidade no espaço urbano e outros elementos estruturais que viabilizam seu funcionamento – isto é, seu metabolismo. Deste modo, quando abordada da perspectiva ambiental, a vida urbana possui uma unidade que ser torna imediatamente visível, por mais fragmentada que ela pareça quando a cidade é tratada do ponto de vista do mercado ou do individualismo associal.

Nesse sentido, um movimento de ecologia urbana, que aborde os problemas da cidade do ponto de vista ecológico, pode nos ajudar a criar as forças necessárias para sairmos do atoleiro criminoso em que estamos. Não somente porque a conjuntura joga a favor dessa perspectiva – basta lembrar a questão do aquecimento global ou o movimento Nossa São Paulo –, mas porque haveria aí a possibilidade de resgatar uma unidade há muito perdida.

Se tomarmos como ponto de partida o combate a um dos símbolos mais criminosos de São Paulo – o automóvel – quem sabe não possamos mudar o rumo dessa história. Quem sabe, fazer com que as gerações futuras, ao olharam para o nosso presente, perguntem não que crime era São Paulo, mas como a sociedade civil criou um ser urbano pulsante nas primeiras décadas do terceiro milênio, muito distante de pertencer ao Vale da Morte.

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Fonte: Le Monde Diplomatique. Brasil. Edição Internet - Boletim 25 - 5/11/2007

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